segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

OS MISTERIOSOS TÚNEIS DAS VIRGENS

Paccelli M. Zahler

Em plena Esplanada, os órgãos públicos possuem seus anexos interligados por túneis para proteger os visitantes dos carros ao atravessarem a rua e para facilitar a vida dos funcionários que precisam entregar documentos ou participar de reuniões no edifício sede ou no próprio anexo.Desde que entrei para o Serviço Público ouvi dizer que aqueles túneis eram chamados TÚNEIS DAS VIRGENS.
Alguns funcionários com mais tempo de casa me explicaram que eram "túneis das virgens" porque não passava nenhuma virgem por eles.
Recentemente, o mistério se desfez. Em contato com uma funcionária aposentada, ela me contou que os túneis são assim chamados porque no dia em que uma virgem passasse por algum deles, ele desabaria.
Passados trinta anos de sua construção, eles permanecem em pé.

VIDA E MORTE NO PENSAMENTO ORIENTAL

Paccelli M. Zahler

Em dado momento da vida, qualquer ser humano, por mais cético que seja, pára e começa a perguntar-se quem é, o que é, qual seu destino, por que está aqui, por que as pessoas nascem e morrem, se depois da morte existe algo mais, e assim por diante.

São perguntas que mexem com o cérebro, provocam ansiedade, medo, expectativa, excitação e, para as quais, o racionalismo cartesiano ocidental dificilmente obterá respostas. Isso porque, para explicar todo e qualquer fenômeno, são necessárias provas materiais, embasadas em conhecimentos ordenados e acumulados ao longo dos séculos a partir da Renascença.

Durante o período da Renascença, todo o conhecimento milenar oriental foi deixado de lado e até mesmo perdido, assim como o foi o dos Maias, Astecas e Incas, porque, dentro da visão antropocêntrica cristã européia, importava converter os povos bárbaros e selvagens ao cristianismo através do medo e da força.

A colonização européia, especialmente no Oriente, acabou revelando um avançado desenvolvimento espiritual, que vai além da compreensão ocidental e que apresenta respostas para as perguntas que afligem o homem moderno, particularmente a morte.

Segundo Swami Rama, os homens comuns consideram certos aspectos da vida como misteriosos ou místicos, os quais são facilmente resolvidos quando se retira o véu da ignorância.Para ele, os cientistas modernos não conhecem a técnica de morrer, mas, na ciência iogue, tais técnicas são conhecidas e transmitidas aos que estão preparados para praticá-las.

A parte conhecida da vida é uma linha que se estende entre o nascimento e a morte, sendo que uma parte maior da existência continua invisível e desconhecida. Quem a compreende, como os iluminados, sabe que o tempo de vida entre os dois pontos (nascimento e morte) é como uma pausa em uma vasta sentença sem ponto final. O DOMÍNIO SOBRE A VIDA E A MORTE “Há muita coisa mais no céu e na terra, Horácio, do que sonha nossa pobre filosofia” William Shakespeare, Hamlet, Ato I, Cena IV.

Em seu livro VIVENDO COM OS MESTRES DO HIMALAIA, Swami Rama relata várias experiências espirituais ao longo de sua vida, algumas delas relacionadas com o domínio sobre a vida e a morte demonstrada por alguns mestres iogues. Conta ele que, aos 17 anos, foi enviado a um lugar perto de Gangotri, onde encontrou um Swami, monge de uma das dez ordens de renunciantes fundadas por Shankaracharya, sentado em uma caverna. Em princípio, pensou estar perdendo seu tempo no aprendizado porque os swamis são pessoas que se retiram do mundo e passam o tempo todo em meditação. Qual não foi a sua surpresa quando o monge disse que não lhe ensinaria através de palavras porque ele não havia sido enviado para receber conhecimentos intelectuais como os que poderiam ser encontrados nos livros e, sim, para experimentar algo. Anunciou então que deixaria seu corpo dois dias depois. Swami Rama não compreendia por que um sábio como aquele, com um corpo tão maravilhoso, decidira suicidar-se. - Não estou me suicidando. Quando retiras a velha capa de um livro e a substituis por outra, não estás destruindo o livro, assim como quando mudas a fronha do travesseiro, não estás destruindo o travesseiro. Na realidade, não estou fazendo nada. Quando chega o momento de deixarmos o corpo, nós o sabemos. Não devemos postar-nos no caminho da natureza. A morte ajuda a natureza. Não devemos temer a morte porque nada nos afeta...Procura compreender o que é a morte, não a temas. Temos medo de muitas coisas e esse não é o modo de viver. A morte não te aniquila, apenas te separa de um corpo...A morte é um hábito do corpo. Ninguém pode viver sempre no mesmo corpo que está sujeito à mudança e à decadência. Precisas compreendê-lo. Como havia anunciado, dois dias depois disse o monge: - Agora sentemos em meditação. Dentro de cinco minutos, deixarei meu corpo. Findou-se o prazo e este instrumento chamado corpo não é capaz de dar-me mais do que já alcancei, de modo que o deixarei para trás. Cinco minutos depois, cantou um mantra e fez-se silêncio. Havia deixado seu corpo!

RENASCIMENTO DA CARNE OU REENCARNAÇÃO

“O não sabermos que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando desenrolarmos toda a meada mortal, nos põe suspensos” (William Shakespeare, Hamlet, Ato III, Cena I)

Segundo Bennet (1980), em 1917, a exploradora e escritora francesa Alexandra David-Neel testemunhou a descoberta de uma reencarnação no Tibete.

O Lama Agnai Tsang morrera há vários anos e seus negócios haviam ficado sob a responsabilidade de um administrador. Este, durante uma viagem de negócios, visitou uma fazenda. Enquanto esperava pela dona da casa, pegou uma caixinha de rapé que havia pertencido ao velho Lama. Um garotinho se aproximou e perguntou: - Por que está usando a minha caixinha de rapé? Devolve-me imediatamente, é minha!

No dia seguinte, o menino foi levado por um séquito de monges à casa do Lama Agnai Tsang. Quando se aproximaram do prédio, o menino gritou: - Por que viramos para a esquerda? O portão do pátio interno fica à direita!

O portão não ficava mais do lado direito, mas a modificação havia sido feita após a morte do Lama.

Kersten (1986) afirma que é muito comum que uma reencarnação, ainda criança, lembre-se de pessoas e coisas que participaram de sua vida anterior, sendo até capaz de recitar trechos escritos que nunca tinha aprendido. Segundo ele, no Tibete há muitas provas desse fato; no Ocidente, contudo, tais acontecimentos não são divulgados porque não se acredita na possibilidade de reencarnação.

De acordo com a filosofia budista, o nascimento e a morte não são fenômenos que acontecem uma vez em uma vida humana – eles ocorrem ininterruptamente. A cada momento, algo dentro de nós morre e algo renasce. Nascer como ser humano é um privilégio. É a rara oportunidade de libertação através do esforço decisivo de cada um e de uma reviravolta no mais profundo da consciência. Como todos devem abandonar seus corpos carnais e experimentar a morte, é bom que aprendam a encontrá-la corretamente quando ela se aproximar. O não-iluminado encontra uma morte após outra incessantemente. Somente os iluminados se recordam de suas inúmeras mortes e nascimentos e a iluminação pode ser obtida através da auto-realização. O não-iluminado parte do pressuposto de que, já que não tem memória consciente de seus inúmeros nascimentos e mortes, estes não tenham ocorrido.

Na Grécia Antiga, a doutrina do renascimento era largamente difundida, pelos menos entre os gregos cultos iniciados nos mistérios. Com a ajuda de símbolos e metáforas, Píndaro, Empédocles, Pitágoras, Sócrates, Platão e Heródoto ensinaram a doutrina do renascimento. Platão, por exemplo, se referia à transmigração do humano para o subumano e vice-versa, dependendo do tipo de vida de cada um. Assim, um bufão assumiria a forma de um macaco; um bravo, a de um leão; um cantor, a de um rouxinol; e assim por diante. A percepção sensorial do homem comum tem se mostrado extremamente limitada. Há outras consciências que os iluminados têm conhecimento e das quais os psicólogos começam a ter alguma compreensão, como é o caso da terapia de vidas passadas.

LIVRO TIBETANO DOS MORTOS OU BARDO THÖDOL

“Sois o arquiteto do vosso destino. A morte e o nascimento são apenas dois acontecimentos na vida. Esquecestes vossa natureza essencial e essa é a causa do vosso sofrimento. Quando dais tento dela, libertai-vos ” (Swami Rama)

O “Livro Tibetano dos Mortos” (Bardo Thödol) foi publicado em inglês em 1927, traduzido pelo Lama Kazi Dawa-Samdup e editado pelo Dr. W.Y. Evans-Wentz.

O Dr. Carl G. Jung o tinha como seu companheiro constante, creditando a ele muitas idéias e descobertas estimulantes, além de inúmeros esclarecimentos fundamentais.

Para o Lama Anagarika Govinda, o Bardo Thödol é a chave para as regiões mais recônditas da mente e um guia para os iniciados e para quem procura o caminho espiritual da libertação.

Nas palavras de Sir John Woodroffe, é um guia do viajante para outros mundos e tem três características:

a) Trata-se de uma obra sobre a Arte de Morrer, pois a Morte, assim como a Vida é uma arte, apesar de ambas serem confundidas;

b) Trata-se de um manual de terapia religiosa para os últimos momentos e de uma instrução, consolação e fortificação para quem está prestes a passar para a outra vida; e

c) Descreve as experiências do morto durante o período intermediário e o instrui a respeito.

Na filosofia oriental, a alma do homem localiza-se na parte superior do cérebro e, no momento da morte, pode deixar o corpo por nove “portas”. O iogue aprende a sair através da “porta” chamada “Brahma randhra”, localizada no topo da cabeça. Quem passa por essa “porta” permanece consciente e conhece a vida futura exatamente como conhece a presente. Por isso, o hindu ortodoxo usa uma mecha de cabelo pendendo desse lugar. É como uma bandeira içada em homenagem ao Senhor Supremo ou Consciência Pura. A partir da saída da alma, esta vai para o Bardo, um estado intermediário entre a morte e o renascimento ou reencarnação, o qual dura 49 dias.

O Bardo Thödol descreve as experiências pós-morte no plano do Bardo, dividindo-o em três regiões:

1) A Região Superior ou “Chikkai Bardo”, referente aos acontecimentos psíquicos no momento da morte;

2) A Região Intermediária ou “Chönyid Bardo”, o Bardo da experiência da realidade; estado da ilusão cármica, resultante dos resíduos psíquicos de experiências anteriores, e que começa imediatamente após a morte; e,

3) A Região Inferior ou “Sidpa Bardo”, que é o Bardo da busca do renascimento, consistindo em uma vontade de nascer e viver.

É na última e mais inferior região do Bardo, onde o morto, incapaz de assimilar os ensinamentos dos Bardos anteriores, torna-se vítima de fantasias sexuais e é atraído pela visão de copulação de casais. Finalmente, é capturado por um ventre e nascerá de novo no mundo terrestre.

A passagem para este Bardo ocorre em 15 dias e, se o morto não foi previamente libertado, vai em busca de um novo nascimento, perdendo a memória da vida passada.

Segundo Carl G. Jung, o nível de conhecimento da psicanálise freudiana não foi além deste último Bardo.

A possibilidade de alcançar a libertação é concedida durante o verdadeiro processo da morte. Depois, começam as ilusões que conduzem à reencarnação. As luzes iluminadoras vão ficando cada vez mais opacas e variadas e as visões mais aterradoras, afastando a consciência da verdade libertadora à medida que ela se aproxima do renascimento físico.

O texto do Bardo Thödol é recitado pelo Lama na presença do cadáver com o propósito de instruí-lo, de fixar sua atenção a cada etapa sucessiva de engano e confusão, de explicar a ele a natureza de suas visões, de modo que ele possa encontrar sua libertação do ciclo de nascimento e morte, indo além de um mero cerimonial fúnebre, preocupando-se em deixar claro ao morto a primazia da lama. Visa restaurar a consciência completa do morto, depois do estado de desfalecimento imediatamente após a morte e acostumá-lo ao ambiente não familiar do Outro Mundo, considerando que ele seja, como a maioria dos homens, algum não-iluminado e, desse modo, incapaz de emancipação imediata.

DESAPEGO AOS BENS MATERIAIS PARA A LIBERTAÇÃO

“Aprende a morrer e aprenderás a viver, pois ninguém aprenderá a viver se não houver aprendido a morrer” (Livro da Arte de Morrer)

Para os ocidentais é muito difícil entender por que os monges orientais se dedicam com tanto afinco às práticas espirituais através do jejum e da meditação, abdicando de todo o conforto da vida moderna. Assim como um membro amputado provoca sensações à pessoa por muito tempo depois da amputação, o morto, no estado de pós-morte, imagina possuir um corpo físico, ficando ligado aos seus hábitos enquanto vivo, o que dificulta a sua libertação. Daí, os casos de espíritos errantes que causam problemas em determinados locais e que são apaziguados com oferendas.

O Dr. Evans-Wentz reportou o caso de um agricultor europeu enterrado nas selvas de Malabar, no Sudoeste da Índia. Um amigo foi visitar seu túmulo e o encontrou repleto de garrafas de uísque e cerveja. Intrigado, perguntou ao povo qual a razão de tais oferendas. Explicaram-lhe que seu espírito havia causado muitos problemas e que um velho feiticeiro descobrira que a única maneira de apaziguá-lo seria o oferecimento de uísque e cerveja nas quais fora viciado.

Em Hamlet, William Shakespeare conta a história do príncipe da Dinamarca que encontra o espírito do próprio pai, que retorna do mundo dos mortos movido pelo sentimento de vingança. No momento do encontro com o filho, o espírito dizia: “Sou a alma de teu pai por algum tempo condenada a vagar durante a noite, e de dia a jejuar na chama ardente, até que as culpas todas praticadas em seus dias mortais sejam nas chamas, enfim, purificadas”.

Isso significa que, quanto mais apegados às coisas terrenas, maior a probabilidade dos espíritos permanecerem no Bardo Inferior.

A prática constante do desapego às coisas e às pessoas rompe os vínculos com o mundo físico e facilita a libertação. Por isso, os grandes iluminados tiveram uma vida simples, em uma luta constante contra a inveja, o orgulho, a ambição, a avareza, a luxúria e a ignorância.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

BENNETT, C. 1983. Viagem no tempo. São Paulo, Hemus, 70 p.

EVANS-WENTZ, W.Y. (org.). 1993. O livro tibetano dos mortos. São Paulo, Pensamento. 192 p.

KERSTEN, H. 1988. Jesus viveu na Índia. São Paulo, Best Seller. 263 p.

SHAKESPEARE, W. 1982. Hamlet, príncipe da Dinamarca. Rio de Janeiro, Ediouro. 156 p.

SWAMI RAMA. 1995. Vivendo com os mestres do Himalaia. São Paulo, Pensamento. 432 p.

1Paccelli M. Zahler é membro da Academia Brasileira de Estudos e Pesquisas Literárias – ABPL, da International Writers and Artistis Association – IWA, da União Brasileira de Escritores –UBE e da Associação Nacional de Escritores – ANE, além da Academia Literária e da Academia Virtual Brasileira de Letras -AVBL.

A FOFOQUEIRA

Paccelli M. Zahler

Olhou para o relógio da praça e apertou o passo. Faltavam quinze minutos para a reunião da diretoria da empresa, na qual fecharia um negócio de vinte milhões de dólares.

Um pouco nervoso, conseguia ver o edifício da empresa mas seu corpo não andava. Desviava automaticamente das pessoas na Avenida Central sem tirar os olhos do prédio.Seu coração batia descompassado e, naquele momento, bem que gostaria de ser o Super-Homem ou um passarinho.

Tão concentrado estava que não ouvia o barulho dos carros e o burburinho das pessoas nos bares, cafés e lojas à sua volta. Entrou correndo pela porta principal.

O relógio da recepção lembrava-lhe que tinha apenas dez minutos para chegar ao vigésimo andar. Colocou o crachá na lapela e foi esperar pelo elevador. O elevador não demorou muito.Algumas pessoas que se aglomeravam na espera pareciam querer entrar todas de uma vez. Consigo remoía um só pensamento: "Espero que ninguém entale na porta!"

Praticamente lotado, o elevador começou a subir. Alguém falava de política ( o coração quase a saltar-lhe pela boca).Duas senhoras vestidas com roupas finas comentavam as peripécias de seus "filhos" - dois cachorros dálmatas. Ao lado, alguém reclamava da gripe violenta que havia contraído por esses dias ( seus músculos enrijeceram em uma tentativa de defender-se da contaminação). Mais adiante, um espirro esguichou perdigotos por todos os lados, fazendo as pessoas se entreolharem com um expressão de repulsa e condenação. Primeiro andar, segundo andar,...Oito minutos! Um pisão no dedo do pé, acompanhado de um pedido de desculpas sem graça.

O sapato parecia queimar-lhe a sola dos pés. O ventilador não funcionava adequadamente e um ar abafado circulava dentro daquela caixa de metal cheia de gente. A luz fluorescente era fria e lembrava uma câmara frigorífica. Um tremendo bafo-de-onça foi o responsável por outra reação de nojo. Aquele "com licença que eu preciso descer" cavernoso e putrefato, aliado ao seu nervosismo, fez seu estômago subir até a garganta, afinal de contas faltavam seis minutos para o início da reunião.

Décimo andar, décimo-primeiro andar,...E o elevador continuava lotado, quente e lento. Décimo-segundo andar, décimo-terceiro andar,...Faltavam cinco minutos para a reunião. Próximo ao décimo-quarto andar, as luzes se apagaram, o ventilador parou, vozes uníssonas exclamaram um "oh!" no exato momento em que alguém nervoso expeliu uma ventosidade inaudível porém com um odor fétido o suficiente para tornar o ar irrespirável. Algumas pessoas controlaram-se para não vomitar, o que iria piorar a situação.Claustrofobia, falta de ar, nojo e o tempo passando.

Seus dedos nervosos procuraram a luzinha do relógio digital. Faltavam apenas três minutos!Os músculos do pescoço doíam e o estômago embrulhava em meio ao ar irrespirável. Gritos de socorro, batidas nas laterais do elevador, pisoteios, cotoveladas, espirros, mãos bobas, escuridão, reunião, cabeça girando, vinte milhões de dólares em jogo, demissão.Uma voz lá fora avisou que houve pane em um dos geradores de eletricidade e pediu calma pois o conserto estava sendo providenciado.

As pessoas dentro do elevador ficaram mais tranqüilas até o momento em que uma voz avisou que necessitava ir ao sanitário com certa urgência. Foi inibida por outra mais forte emitida do fundo do elevador que ameaçou desfechar-lhe uma série combinada de sopapos em caso de descontrole intestinal.

O calor aumentou, o ar não circulava.Um pessimista colocou mais cinco pessoas em pânico dizendo que todos iriam morrer asfixiados. Um crente invocou a proteção do Senhor, uma beata começou a rezar fervorosamente e em voz alta, alguém começou a sentir vertigens. Trinta minutos depois, as luzes se acenderam e o elevador voltou a funcionar. Todos desceram no décimo-quarto andar aliviados.

Subiu as escadas de dois em dois degraus. Já no vigésimo andar, entrou correndo na sala, pediu um copo d'água e perguntou à secretária a respeito da reunião. - Estão a sua espera, doutor, e já foram avisados sobre a pane no elevador social!

Duas horas depois, nem se lembrava do incidente. Apenas respirava aliviado por ter fechado o negócio. Na certa, seria promovido. Tomou o elevador no vigésimo andar. Este parou no décimo-oitavo andar para que um senhor bem apessoado, carregando uma pasta 007, portando um crachá de visitante, entrasse. "Inexplicavelmente", o desconhecido desceu apressado no décimo-sétimo andar. A explicação veio segundos depois quando a porta se fechou e o elevador já estava em movimento e um odor fétido lembrou-lhe a pane ocorrida horas antes.

Para seu azar, Dona Quitéria, secretária do Doutor Ricardo, conhecida em toda a empresa pelo comprimento de sua língua ferina, tomou o elevador no décimo-sexto andar. Torcendo o nariz, olhou para ele atravessado, fez cara de nojo e balbuciou entre os dentes cerrados: "Relaxado, mal-educado, hum!" Ele ficou vermelho e tentou explicar-se:"Mas não fui eu, Dona Quitéria, não fui eu!" De nada adiantou.

No décimo-quarto andar, o mal ficou completo. Dona Maroca, amiga íntima e confidente de Dona Quitéria, tomou o elevador e ainda teve tempo de aspirar o ar empestado. Ambas olharam-no de cima a baixo e começaram a cochichar. Em menos de vinte e quatro horas, sua fama havia crescido. Ouvia gozação dos colegas de trabalho, tentava explicar-se e de nada adiantava. Semanas depois, encontrou Dona Quitéria tomando o elevador no décimo-sexto andar e fez-lhe companhia. "Inexplicavelmente", desceu no décimo-quinto andar. No dia seguinte, soube que Dona Quitéria havia se licenciado por dois meses para tratar-se de um problema nervoso. Havia sido surpreendida, no dia anterior, empestando o ar do elevador e pondo a culpa nos outros.

Explicara, explicara, mas não convencera ninguém. Seus nervos não agüentaram! Finalmente, conseguira vingar-se da língua ferina da Dona Quitéria. Tinha sido uma ótima idéia ter comido aquela feijoada caprichada com batatas-doces durante o almoço.

O IMPÉRIO DAS SOMBRAS

Paccelli M. Zahler

Meu corpo parecia voar pelo céu. Eu era o condor pairando sobre as montanhas, deslocando-me no céu e visitando todos os lugares. Uma visão chamou-me a atenção particularmente. Era uma instituição pública de um império ao sul do Equador.

O império era rico em recursos naturais, seus dirigentes, por outro lado, tinham a mentalidade de levar vantagens em todas as suas ações, desde as mais simples até as mais sofisticadas.
Cobravam “pro labore” até para assinar atos oficiais.

A cumplicidade era tanta, que ninguém contava nada para ninguém, mas todos sabiam. Havia um dirigente em especial.Este era conhecido como bajulador imperial.Tudo o que lhe mandassem fazer, ele fazia, não se importando se estava ou não de acordo com o arcabouço legal do país. Ele tinha consciência de sua incapacidade para dirigir repartições e equipes técnicas. Já na faculdade, não conseguia trabalhar em grupo. Primeiro, porque nunca trabalhava. Varava noites e noites fazendo serestas, jogando cartas e extravasando suas fantasias eróticas na Pensão da Dona Isabel. Segundo, porque nunca lera um livro na vida. Costumava fotocopiar as anotações dos colegas, decorá-las e elaborar longas colas para fazer as provas. Apesar de todo o seu desmazelo com os estudos, conseguiu eleger-se presidente da associação dos formandos.Em uma época de inflação galopante, pegava o dinheiro da mensalidade dos colegas, depositava em sua caderneta de poupança e ficava com os juros, aproveitando-se do fato que o tesoureiro, por inexperiência, apenas computava o dinheiro que entrava e não os rendimentos da aplicação.

Descoberto, disse que não via mal algum no que havia feito. Como a associação precisava de uma conta corrente para guardar o dinheiro, prestou um favor a ela depositando em sua própria conta. Se queriam o dinheiro de volta, era só descontar o cheque que ele acabara de assinar. O que o tesoureiro registrou estava disponível para o próximo presidente.

Apesar dessa demonstração de mau caráter, conseguiu concluir o curso superior, contudo, não teve uma formação muito sólida devido aos seus hábitos pouco ortodoxos. Ficou mais conhecido como boêmio e garanhão do que como um profissional competente e de futuro promissor.

Como acontece com os profissionais despreparados para o exercício das atividades técnicas, apegou-se a um aristocrata que arranjou-lhe um emprego no serviço público imperial, obviamente, sem concurso público.Como não sabia nada de sua área de atuação, conseguiu um posto de chefia para lidar com as contas públicas. Estava onde queria. Em cada convênio que realizava, engordava a sua conta bancária em 10 a 15 % do valor total estipulado.Pouco tempo depois, o aristocrata que o protegia conseguiu ser nomeado para o Parlamento Imperial e propôs uma Lei para enquadrar no serviço público imperial todos aqueles funcionários que não eram concursados. Foi a glória! Agora ele passaria a ser um servidor público imperial e sem concurso público.

Aprovada a Lei e investido no cargo, suas atitudes começaram a mudar, principalmente, quando assumiu uma chefia técnica porque precisava mostrar serviço para seus superiores.

Sabedor de sua falta de conhecimento técnico e de administração pública, o que poderia render-lhe algumas críticas de parte dos colegas com mais tempo de casa, tratou de humilhá-los e afastá-los imediatamente de sua repartição e cercar-se de funcionários sem visão crítica. Ao mesmo tempo, tendo conhecimento que o dirigente maior do órgão não conhecia as atribuições regimentais da repartição que chefiava, tratou de inventar atividades extras para impressioná-lo.

Constituiu um grupo de trabalho para modernizar a repartição pela qual respondia.A idéia básica era elaborar um plano estratégico que convencesse os superiores do arcaísmo da estrutura atual. Na verdade, o grupo de trabalho iria criar uma estrutura que atendesse aos interesses políticos do chefe, ou seja, criar dificuldades e vender facilidades. Dessa maneira, a conta bancária de todos, uns mais outros menos, estaria sempre abastecida.

Pôs-se o grupo a trabalhar e a fazer palestras pelo país, às custas do erário pois ninguém é caixa-forte, procurando arregimentar funcionários ansiosos em se destacar dos demais e ambiciosos em ser os pioneiros, os construtores da estrutura administrativa do futuro.Nessa nova estrutura, os processos seriam mais rápidos, haveria possibilidade de fazer contratações sem a necessidade de concursos públicos, isto é, os apadrinhados teriam emprego garantido, e haveria abertura para cobrar pelos serviços prestados. Todos aqueles que ajudassem aquela chefia a construir a autarquia do futuro, batizada com o pomposo nome de Agência, certamente seriam beneficiados com um cargo à altura. Em outras palavras, chefiariam as subagências nas respectivas províncias.

Incontinenti, uma horda de colaboradores surgiu. Tais colaboradores, em nome do importante trabalho que passaram a realizar, deixaram de lado as suas tarefas regimentais rotineiras para lançarem-se no ousado desafio de elaborar as bases da futura Agência, aquela que iria resolver os problemas do Império e, principalmente, os problemas de caixa de campanha para financiar os candidatos que apoiavam o chefe, além de engordar a conta bancária do próprio, afinal de contas, quem trabalha merece uma remuneração pelo seu trabalho.

Foram viagens semanais intermináveis, recepções a autoridades, palestras, audiências públicas inumeráveis às custas do erário.Consultores foram contratados a rodo, sem falar nos amigos, parentes, afilhados e apadrinhados políticos que nunca apresentaram um relatório sequer, em uma tarefa hercúlea de convencimento da importância da nova estrutura para o país, especialmente para a repartição, uma vez que ela ficaria livre do engessamento em que vivia e mais leve para realizar as funções normativas.Haveria também a renovação dos quadros de pessoal porque nada justificava a permanência de funcionários antigos, considerados dinossauros e pés-na-cova. Eles haviam parado no tempo. Não adiantava gastar recursos para treiná-los, era jogar dinheiro fora.Fazia-se necessário contratar gente nova, com novas idéias, especialmente aqueles afoitos e ousados, que não se importariam em cumprir ordens mesmo as mais esdrúxulas. Era uma demonstração de lealdade com a direção superior.

Três anos se passaram e os discursos se repetiram. Perguntas foram feitas pelos funcionários com mais tempo de casa e as respostas nunca foram adequadamente respondidas.Dizia-se simplesmente que eles não fariam parte da nova autarquia porque já estavam ultrapassados. A idéia era contratar gente nova, com espírito empreendedor, que não ficassem presos aos preceitos legais. Em outras palavras, que fossem ousados o suficiente para cumprir as ordens do chefe, geralmente dadas através de bilhetinhos ou pelo telefone, sem questionamento quanto às implicações legais. Se desse algum problema de natureza jurídica, a Consultoria Jurídica da nova Agência estaria à disposição para fazer a defesa nos tribunais.

Tudo corria muito bem. Os planos já estavam elaborados, a nova estrutura montada, boa parte dos políticos convencidos da importância da nova Agência, particularmente para seus apadrinhados que teriam posições de destaque, porém surgiu um impasse. O grupo de trabalho brigava entre si pelos postos de chefia na Agência. Cada qual queria mandar mais que os outros porque havia trabalhado muito e achava que merecia uma recompensa por isso.

Quando o assunto chegou ao Ministério Público Imperial e foi aberto um processo para a apuração do que realmente estava acontecendo e do que havia sido feito com o dinheiro público gasto no empreendimento, o grupo foi imediatamente dissolvido em uma tentativa de dissimular suas ações. Seus integrantes passaram a justificar seus atos e a culpar a não implantação da Agência como resultado da conspiração dos funcionários mais antigos e da falta de vontade política dos governantes. Ainda assim, continuaram advogando a causa e repetindo o velho discurso do planejamento estratégico e da visão de futuro.Para o chefe, foi um duro golpe. Afinal, não poderia cumprir as promessas de colocação de apadrinhados políticos na estrutura administrativa que iria alavancar a sua carreira. Era preciso identificar e punir os responsáveis pelo fracasso.

Seguindo a sua lógica audaciosa e orgulhosa, após da dissolução do grupo, destituiu todos os ocupantes de cargos de confiança e cercou-se de gente nova. Os demais que respondessem pelos seus atos na Justiça Imperial. Ele não tinha nada a ver com o assunto, os testas-de-ferro que se virassem.Sentia-se apunhalado pelas costas. Tomaram decisões sem o seu conhecimento e consentimento. Que pagassem pela incompetência!

Diante desse percalço, que por pouco não arranhou a sua brilhante administração, sentia necessidade de elaborar um novo plano para manter-se em evidência.Aproximava-se o período de campanha eleitoral e ele precisava de apoio político para manter-se no cargo.Por outro lado, os partidos políticos e candidatos à reeleição que o apoiavam no Parlamento precisavam de dinheiro para as suas campanhas. Entendia ele que, para ser chefe, não era necessário entender do serviço e, sim, cercar-se de assessores leais que lhe dessem as soluções que precisava para seus projetos pessoais, independentemente de todo e qualquer preceito legal. E isso era factível porque os administradores públicos se preocupavam mais com os holofotes do que com o estrito cumprimento de suas atribuições regimentais, facilitando as fraudes e os desvios do dinheiro público como vinha acontecendo desde a época colonial.

Pensando nisso, cercou-se de dois auxiliares leais. Um serviria como testa-de-ferro e o outro com ajudante. Ambos reviraram o Regimento Interno da repartição para descobrir brechas legais.

Depois de algumas semanas estudando possíveis soluções para os anseios do chefe, surgiu a idéia de efetuar o controle da importação de produtos que afetavam o balanço de pagamentos do país.

Havia um desequilíbrio favorável às importações e o imperador já manifestara sua preocupação com isso porque, mesmo sobretaxando-os, as importações continuavam.

Inteligente como era, o chefe anteviu a oportunidade que tanto almejara. Promoveria uma reunião com produtores nacionais e importadores, jogaria um grupo contra o outro, acirraria ao máximo os ânimos e lançar-se-ia como mediador. Proporia que os importadores pagassem uma taxa por unidade da mercadoria importada, fora a sobretaxa oficial, para que o preço dos produtos importados não afetassem tanto o preço pago aos produtores. Assim o fez.

Os importadores, desesperados por já terem contratos fechados no exterior, aceitaram a proposta na expectativa de recuperar o dinheiro por ocasião da venda dos produtos para beneficiamento industrial.

Como as importações estavam em seu pico e os navios não podiam ficar parados nos portos sob pena de pagarem taxas de estadia, os importadores resolveram depositar o total acertado no acordo de cavalheiros com os produtores e o mediador. Assim, não haveria empecilhos à entrada das partidas.

O dinheiro foi imediatamente repartido. Um percentual foi para a associação dos produtores nacionais, outro para as caixas de campanha dos partidos políticos e candidatos que apoiavam o chefe. O restante ficou com o chefe que distribuiu um pequeno “pro labore” para seus diletos auxiliares.

Um contratempo, porém, veio atrapalhar os seus planos novamente. Os importadores que pagaram à vista a taxa extra queriam exclusividade de importação, principalmente porque o setor de importações do Império determinou limitar a concessão de cotas para produtos vindos do exterior. Simultaneamente, os importadores independentes, que não haviam sido consultados e nem participado da reunião, manifestaram-se contrários ao pagamento da taxa extra e reivindicavam, com razão, o seu direito de importar.Ameaçavam, inclusive, entrar com ações na Justiça Imperial para garantir esse direito.

O chefe ficou bastante irritado. Na certa, haviam vazado informações sobre o acordo para o setor de comércio exterior do Império e o pessoal de lá estava interpondo dificuldades para receber a parte deles. Dito e feito!

Na reunião seguinte, com produtores nacionais, importadores associados e independentes, e representantes do setor de comércio exterior do Império, tudo ficou esclarecido e um percentual do que foi pago teve que ser destinado aos novos sócios, mesmo contra a vontade do chefe.

Tudo isso acontecia sob as barbas do Imperador que passava todo o tempo cultuando a sua própria imagem e arrebanhando títulos de Doutor “Honoris Causa” em universidades pelo mundo a fora.

Para os demais países, a inflação estava sob controle, a economia em crescimento, o país ia bem. Não se levava em conta a fome, as altas taxas de mortalidade, criminalidade e desemprego, nem a corrupção que se institucionalizara nos órgãos públicos, a ponto do homem honesto envergonhar-se desta condição.

Havia um Império das Sombras inatingível aos nossos olhos mortais.

(Obra de ficção.Qualquer semelhança entre fatos e personagens reais pode ser mera coincidência)(ou não!)